Márcio Resende
Especial para o UOL
Em Buenos Aires
Heroísmo e traição. As duas palavras mais repetidas na Argentina nas últimas horas em referência ao vice-presidente, Julio Cobos, mostram a polarização do país depois de mais de quatro meses de um conflito agropecuário cujo epicentro foi o aumento no imposto às exportações de grãos, as chamadas retenções.
Considerado "traidor" por governistas, mas visto como "herói" pela maior parte da sociedade, o vice-presidente que tomou a decisão de pacificar o país em vez de obedecer as ordens da presidente Cristina Kirchner, foi o protagonista de um surpreendente desenlace que dinamitou o capital político da presidente, há apenas sete meses no cargo.
A votação sobre o projeto de lei que aumentava as retenções terminou empatada em 36 votos e coube ao presidente do Senado, também vice-presidente da República, Julio Cobos, o "voto de Minerva" que impôs a Cristina e ao ex-presidente da República e atual presidente do Partido Justicialista (peronista), Néstor Kirchner, uma derrota histórica, abrindo as portas para uma crise político-institucional que leva incertezas ao futuro imediato do país.
Cobos foi recebido como um herói na sua terra Natal, a província de Mendoza, no extremo oeste do país, onde procurou refúgio ao lado da família. O vice-presidente foi obrigado a percorrer os 1.100 quilômetros que separam Buenos Aires de Mendoza de carro, já que não conseguiu a liberação de um avião da Presidência.
Atravessou o país numa épica caravana saudada com entusiasmo pelo povo por onde passava. Ao chegar no final da noite, foi aplaudido pela multidão à porta da sua casa.
"Até Maradona telefonou"
"Até Maradona me telefonou para dizer que eu o fiz recuperar o orgulho de ser argentino", contou. Cobos admitiu que não recebeu nenhum telefonema de Cristina, com quem não tem uma conversa há um mês. Enquanto os Kirchner buscavam votos para aprovar o aumento das retenções, Cobos buscava consenso e discordava da intransigência do casal; o que lhe valeu um abandono político dentro do próprio governo.
"Ninguém me pressiona. Eu funciono baseado nas minhas convicções. (Os Kirchner) tinham que ter percebido que dentro do próprio oficialismo havia vozes dissidentes", indicou.
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Julio Cobos, vice-presidente da Argentina, derrubou a lei de impostos e impôs duro golpe a Cristina Kirchner
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Fortalecido dentro de um governo enfraquecido, Cobos rejeitou a versão de uma candidatura para suceder Cristina Kirchner em 2011, embora tenha saudado a multidão da janela da sua casa com uma bandeira argentina e comos braços abertos numa imagem que lembrava a de um presidente na varanda da Casa Rosada.
Era o final de uma jornada repleta de rumores exagerados de renúncia tanto do vice-presidente quanto da própria presidente.
Renúncia
Antes de viajar, Cobos afirmou que não pensa em renunciar diante das versões de uma crise interna irreconciliável com a Presidência.
"Se me pedirem a renúncia, estariam afetando a institucionalização porque fui eleito com a mesma quantidade de votos que a presidente", refletiu. E também usou a palavra traição, mas para se defender. "Renunciar seria trair a vontade popular dos que votaram em mim", interpreta. "Escutei vários dirigentes que falaram sobre a minha renúncia se eu votasse contra. As pessoas querem viver tranquilas e querem que os políticos tenham humildade", priorizou. "Há uma crise social; não política", desconversou.
Ainda está fresca na lembrança dos argentinos a renúncia, em outubro de 2000, do então vice-presidente Carlos "Chacho" Álvarez (atual presidente da Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul). A saída de Álvarez, também por discordar da postura do então presidente Fernando de la Rúa, é apontada como o ponto de inflexão de uma crise política que, como peças de um dominó, desencadeou no colapso de 2001.
Origens diferentes
Julio Cobos provém de outro partido, a União Cívica Radical (UCR), que sempre rivalizou com o peronismo. O partido sempre se caracterizou pelo apego às instituições e à Constituição. Os Kirchner convidaram Cobos para a chapa de Cristina, com a estratégia de gerar uma imagem de pluralidade. A aceitação valeu a Cobos a expulsão da UCR, onde era considerado um traidor.
As funções de um presidente do Senado são limitadas. Só pode conduzir as sessões, sem direito a voz. Nunca antes na história argentina uma votação dessa dimensão terminou empatada e precisou do voto de desempate do vice-presidente da República numa postura contrária à do próprio governo. De figura decorativa, Cobos transformou-se em protagonista.
"(Os Kirchner) têm que compreender que venho de outro espaço político e que posso ter uma opinião diferente", afirmou.
Cristina sente-se traída
À noite, na sua primeira aparição pública, Cristina lançou duras críticas indiretas aos traidores, mas não mencionou a derrota no Senado. Transformou uma simples inauguração das obras de remodelação de um pequeno aeroporto no Norte do país num show patriótico com direito a hino nacional. Perante militantes estrategicamente convocados, elogiou a possibilidade de "olharmos nos olhos e saber que que nunca nos traímos".
Numa alusão ao vice-presidente Cobos, usou a ironia para dizer que "alguns talvez não tenham entendido o que dissemos em outubro (quando foi eleita), mas talvez algum dia entendam porque alguns demoram mais para entender as coisas do que outros".
Governabilidade
Mas, segundo prestigiosos analistas políticos, talvez seja a presidente quem ainda não tenha entendido que foi posto um limite para a acumulação de poder.
Para Joaquim Morales Solá, "Cobos acabou com uma forma dos Kirchner de governar e com um estilo de mandar ao longo de cinco anos".
"Cobos não foi um carrasco oportunista, mas sim a expressão definitiva de uma crise na opinião pública, na confiança social sobre a economia, nos aliados e em grande parte do peronismo. O governo usou e abusou da hegemonia. Foi para o tudo ou nada e a derrota abateu-se definitivamente sobre o oficialismo. Agora uma administração enfraquecida deverá afrontar mais três anos e meio de vida", avalia.
Dentro do próprio peronismo, já se fala de um pós-kirchnerismo. E dentro do governo, há rumores sobre uma renovação ministerial para dar oxigênio a uma presidente cuja popularidade está em franco declínio, segundo as sondagens. Há seis meses, o casal Kirchner se gabava de ter o controle de dois terços do Senado. Nunca um governo perdeu tanto em tão pouco tempo.
"Chegou ao fim a forma de governar do ex-presidente Néstor Kirchner que faz do conflito constante uma forma de construir poder sem nunca ceder. As crises são oportunidades e a presidente está diante da grande possibilidade de construir uma política de consensos diferente da que, em sete meses de governo, causou-lhe um alto desgaste. Se a presidente mantiver a linha de confrontação, haverá problemas de governabilidade", prevê o analista Rosendo Fraga, diretor do Centro de Estudos Nova Maioria.
A fenda que já existia entre os Kirchner e Cobos antes da votação transformou-se agora num abismo, o pêndulo da credibilidade está do lado de Cobos. É a presidente quem deve aproximar-se do seu vice.
"Cristina Kirchner pode ter Julio Cobos como um aliado para conseguir consensos ou pode encará-lo como um traidor. Terá mais chance de governabilidade se aproximar-se de Cobos do que se o atacar", acredita.
"Judas"
O estilo imperativo na hora de governar fica claro na obediência automática imposta à tropa. Aquele que ousa questionar as ordens é classificado como traidor. Na madrugada da votação, Cobos sofreu a pressão kirchnerista nas entrelinhas das advertências. O líder da bancada governista no Senado, Miguel Pichetto, usou uma passagem bíblica sobre a traição para comparar Cobos com Judas diante de todo o país.
"Jesus disse aos discípulos: 'O que tiver de ser feito, que seja feito rapidamente'. Não gostaria de estar no seu lugar", disse diretamente a Cobos, segundos antes do voto do vice-presidente, em referência às palavras de Jesus a Judas na Última Ceia.
Imediatamente depois de Cobos votar contra o governo, os militantes kirchneristas pixavam nas imediações do Congresso: "Cobos traidor".
Apesar de derrubado, aumento continua vigente
O clima pelo interior do país era de festa. Buzinas e caravanas de tratores para receber os ruralistas. Mas as entidades agropecuárias avisaram que a luta continua. A lei foi rejeitada pelo Congresso, mas a resolução ministerial que aumenta as retenções de 35% a mais de 50% de acordo com o cereal e com o valor internacional do produto continua vigente.
Os ruralistas emitiram um documento intitulado "A República sai fortalecida", no qual exortam o governo a derrubar a medida de aumento das retenções. O texto também agradece especialmente ao vice-presidente Cobos pelo seu voto e pede ao governo que seja criada uma mesa de diálogo para a nova fase da luta: a elaboração de uma política agropecuária integral. O aumento no imposto era o carro-chefe do conflito, mas outras reclamações relacionadas com o trigo, com a carne e com o leite faziam parte do protesto.
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