Calote da Argentina tem origem em políticas dos anos 90, dizem especialistas
03/08/2014 10h45
Brasília
Wellton Máximo – Repórter da Agência Brasil*
Edição: Nádia Franco
O default (calote)
técnico na dívida externa da Argentina reflete a herança de políticas
desastrosas do fim dos anos 90. Segundo economistas ouvidos pela Agência Brasil, o impasse no pagamento aos credores pouco tem a ver com a gestão atual da economia do país vizinho. “A
rigor, a situação da Argentina nem pode ser chamada de calote porque o
país tem dinheiro para pagar a dívida reestruturada [renegociada], mas
uma pequena parte dos credores não quer receber com desconto”, diz o
professor de macroeconomia do Ibemec Alexandre Espírito Santo. Segundo
Alexandre, a crise cambial que estourou no início do ano na Argentina,
elevando a inflação e reduzindo o consumo, não está relacionada ao
calote. “É importante separar as coisas. Os problemas da dívida
argentina vêm de um processo que se arrasta há anos. Mas o default técnico pode sim, intensificar a recessão por lá”, explica. Economista-chefe
do banco Sulamérica Investimentos, Newton Rosa concorda que as origens
do impasse na dívida argentina não estão na política econômica atual,
embora os fundamentos econômicos do país vizinho agravem a situação. “A
crise da dívida vem de mais de dez anos, mas o calote piorou o que já
estava ruim, num país sem crédito externo e com poucas reservas
internacionais”, comenta. Na década de 90, a Argentina manteve o
regime de câmbio fixo, pelo qual um peso equivalia a um dólar com
garantia na Constituição do país. Para financiar a moeda
sobrevalorizada, a economia argentina tornou-se cada vez mais dependente
do capital especulativo. Após a crise da Rússia, em 1998, e do Brasil,
em 1999, a Argentina ainda resistiu por dois anos à fuga de divisas. No
entanto, em dezembro de 2001, o governo do ex-presidente Fernando de la
Rúa, liberou o câmbio. A desvalorização abrupta do peso tornou
impagável a dívida pública (externa e interna) do país, que era em boa
parte corrigida pelo dólar. Sem reservas internacionais para honrar os
compromissos, a Argentina viu-se obrigada a deixar de pagar os juros e a
dívida principal dos papéis que havia emitido. Com a moratória, o país
foi excluído do sistema financeiro internacional e ficou sem acesso a
crédito externo. Em 2005 e 2010, a Argentina renegociou a dívida e
apresentou diversos planos de reestruturação. Dos credores
internacionais, 93% aceitaram a proposta do governo argentino para
quitar os débitos de forma parcelada com desconto de 60% a 65% no valor
da dívida. No entanto, 7% não aceitaram o plano e decidiram contestar o
acordo na Justiça norte-americana, que tem jurisdição sobre os títulos
emitidos na Bolsa de Nova York. Em novembro de 2012, o juiz de
primeira instância Thomas Griesa, do Tribunal Federal de Nova York,
aceitou a alegação de um grupo que representa 1% do total de credores e
obrigou o pagamento do valor integral dos papéis, mais os juros. Esse
grupo é formado pelos fundos abutres, que compram títulos podres e
depois cobram o valor dos papéis na Justiça.
Reservas argentinas estão hoje em torno de US$ 30 bilhõesMarcello Casal Jr./Agência Brasil Segundo
o governo argentino, a decisão abre precedente para que os demais 6%
que não aceitaram o acordo de reestruturação também cobrem o valor
integral da dívida. Alguns entraram com processo em outros tribunais dos
Estados Unidos. Se esses grupos fossem cobrar hoje, a Argentina teria
de desembolsar cerca de US$ 15,4 bilhões, mais juros, o que ficaria em
torno de US$ 17 bilhões. O montante equivale a mais da metade das
reservas internacionais do país, em torno de US$ 30 bilhões. Em
agosto do ano passado, a Corte de Apelações do Segundo Circuito de Nova
York manteve a sentença de Griesa e ordenou o país a pagar a totalidade
do US$ 1,3 bilhão devido aos fundos abutres. A batalha judicial
arrastou-se até junho deste ano, quando a Suprema Corte dos Estados
Unidos rejeitou os recursos do governo argentino e manteve as sentenças
de primeira e segunda instâncias. Desde então, a Argentina entrou
numa corrida contra o tempo para evitar o calote. No fim de junho, o
país depositou mais de US$ 1 bilhão em um banco de Nova York para pagar a
parcela devida aos 93% de credores que aceitaram a renegociação. O juiz
Griesa, no entanto, sustou o pagamento, alegando que o Banco de Nova
York ajudaria a Argentina a violar a sentença judicial se permitisse ao
país pagar os credores da dívida reestruturada, antes dos fundos
abutres, ganhadores do processo. Em 30 de julho, venceu o prazo
para que o governo argentino pagasse uma nova parcela da dívida
renegociada. Sem ter como pagar aos credores que aceitaram a
reestruturação, o país entrou em default técnico. * Colaborou Monica Yanakiew, de Buenos Aires